quinta-feira, 24 de maio de 2018

Procrastinação



Faz alguns anos que tenho problemas com procrastinação, como praticamente todos que conheço hoje em dia. Na época da escola não era algo tão problemático por não trazer grandes prejuízos, mas durante a faculdade foi quando a coisa degringolou e o fato de procrastinar se tornou a minha principal fonte de autojulgamento e culpa. Houve muitas matérias que não estudei durante um semestre inteiro e vistas apenas na véspera das provas, trabalhados adiados e lágrimas derramadas. O complicado de ter sido uma aluna de alto funcionamento na escola era que ninguém levava muito a sério o nível de sofrimento que procrastinar me trazia na faculdade. Hoje entendo bem o que acontecia: minha escola era pública e o ensino não era tão puxado, então estudar de última hora dava conta daquelas condições e resultava em boas notas. Já a faculdade era federal, com uma carga de estudos absurda, conteúdo muito complexo já no primeiro semestre e também havia a pressão de estar cercada por colegas muito melhor preparados que eu, com um capital cultural enorme. É claro que as estratégias de antes não funcionavam mais, mas para quem estava de fora parecia que pouca coisa havia mudado.

No sétimo período de faculdade eu já não aguentava mais e busquei terapia, que me ajudou bastante com estratégias de manejo da ansiedade, divisão de tarefas, controle do tempo, entre outras coisas. É claro que o comportamento voltou muitas vezes e foi frustrante, mas só ultimamente aprendi uma nova lição que tem feito a diferença: quando você aprende estratégias para reduzir a procrastinação, a ideia é que os momentos de vida em que você se engaja no comportamento sejam reduzidos, mas não necessariamente excluídos. Ter essa noção faz toda a diferença porque hoje quando estou procrastinando - como neste exato momento -, sei que está tudo bem e que posso voltar aos trilhos. Também me tirou o desespero em que fico quando não estou procrastinando e fico com medo de "perder a onda" e voltar a fazer, como se tivesse que agarrar com todas as forças aquela chance de fazer direito. Já entendi que as coisas que fazemos, pensamos e sentimos são como ondas. Elas vêm e vão, e o mar que é a vida muda muito, mas sempre está ali. Hoje posso não procrastinar, amanhã voltar e ter mil oportunidades de recomeçar. Uma outra lição que aprendi foi evitar ao máximo ficar buscando apps, sites e vídeos sobre o assunto, pois isso certamente virará outra forma de procrastinar. Recentemente busquei e li alguns estudos científicos sobre o assunto e a área é surpreendentemente mal estudada em termos de tratamento; de uma forma geral apenas as causas foram bem estudadas e têm bem menos a ver com ansiedade e perfeccionismo do que pensamos. Ou seja, a chance de ficar pulando de um método que funcionou para um sujeito específico para o outro sem aquilo dar certo para você porque ainda não é algo bem fundamentado é gigante. Nessas horas agradeço meu espírito cientificista por me ajudar a economizar tempo, tudo o que uma procrastinadora precisa.

E mesmo com toda essa melhora ainda é difícil evitar a carga de autojulgamento quando a coisa aperta. A sensação de sufocamento, aperto no peito, pensamentos correndo e martelando pela mente, olhar para o relógio e ver cada segundo como um inimigo que se aproxima do seu campo de batalha...acho que nunca vou me acostumar com nada disso, apesar de não me afogar mais. E lá vou eu para mais um recomeço.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Os 88

 
Dia desses perguntei no Twitter como é que faz quando você ama a pessoa e quer decapitá-la ao mesmo tempo, brincando sobre a minha mentalidade para agressão ter uma estética baseada em Kill Bill. A história por trás do questionamento é tão simples quanto dolorosa.

Há alguns anos eu participava de uma comunidade muito movimentada no Orkut e nela fiz um grupo de amigos íntimos. São pessoas que vão à minha casa, que eu visito, vieram à minha formatura, dentre outras expansões do virtual para o real. Um deles era um dos mais especiais e era muito novo, devendo ter por volta de 14 anos quando eu já tinha 18 ou 20 - quanto mais velhas ficamos, menos exatas são as datas. Ainda estava na escola e eu já estava no primeiro ano de faculdade, mas nossa ligação ficou extremamente forte e hoje nem lembro como foi isso, mas estava lá. Durante muitos anos da minha vida eu quis ter um irmão e mesmo que à distância, sentia que tinha um pouco disso. Conversávamos dia e noite sobre os artistas e filmes obscuros do cinema indiano que ninguém conhecia, eu me preocupava com suas brigas com o irmão e sensação de não pertencimento na escola, contava das minhas experiências na faculdade, descobrimos o feminismo juntos. Me sentia muito amada e além de amá-lo de volta, me percebia cuidando de alguém. Pensando sobre isso agora, essa experiência talvez tenha sido uma das muitas que reafirmou minha conexão com uma profissão que envolve o cuidado humano. Aquele parecia ser o meu lugar. Também foi importante porque até então eu mantinha uma certa distância emocional dos meus amigos, e com ele e nossos outros amigos eu pude aproveitar a barreira virtual para experimentar dizer para as pessoas que eu as amava e elas eram importantes para mim.

Acompanhei o final do seu ensino fundamental, a passagem pelo ensino médio e entrada na faculdade com um orgulho fraternal. Logo após entrar na faculdade ele sumiu um pouco, coisa que já esperava por ter feito a mesma coisa quando vivi aquela fase, pois é um período de intensas adaptações e é coisa demais para dar conta. Nos encontramos pessoalmente e foi divertido, depois um tempo passou e ele sumiu completamente. Na época não senti muito por também estar enrolada com uma nova transição complexa de vida, que era a de estudante para recém-formada, mas às vezes eu e outra amiga falávamos sobre a estranheza daquilo. Com o passar do tempo me acostumei a pensar nele como uma pessoa que tinha um certo jeito e determinados interesses na adolescência e depois muda muito na vida adulta, pois é o que acontece com a maioria de nós. Então era como se aquele meu irmão menor tivesse morrido e eu não reconhecesse esse novo, que parecia bem esquisito e que nem estava presente, de qualquer forma. Até achava melhor que fosse assim, pois a  imagem que eu guardava do outro era tão boa que não valia a pena mexer nela.

Faz alguns dias que ele entrou em contato novamente e fiquei muito feliz por poder saber como as coisas andavam em sua vida. Fui receptiva e calorosa como sempre sou com pessoas especiais para mim que não vejo há muito tempo: é como se nunca tivéssemos nos afastado. Tudo estava indo bem e a fluidez da conversa era a mesma de anos atrás, até ele comentar que nos últimos anos vinha acompanhando meu outro blog e mostrar que ainda tem os mesmos interesses de antes. Naquele momento me surgiu uma raiva imensa e inesperada, pois não esteve presente durante os últimos anos e também por eu não estar muito acostumada a sentir raiva. Eu sabia lidar com o meu amigo que ficou adulto, mudou e descobriu outros interesses e pessoas. Eu sabia lidar com a morte simbólica do menino que era importante pra mim. Eu não lidar com uma pessoa que não tinha abandonado as coisas que compartilhávamos e que ainda mantinha alguma ligação comigo, mas que escolhia me deixar de lado. 

Tem sido difícil tentar reconstruir uma relação em cima dessa informação que eu não tinha antes e com essa raiva que ainda estou aprendendo a ver como parte de mim. Não sei nomear tudo porque são muitos sentimentos e pensamentos, mas é como se eu tivesse sido rejeitada após mostrar o que havia de bom em mim. Eu entenderia meus amigos das minhas fases mais chatas se afastando, mas aquilo foi demais. É complicado e injusto de uma forma como só a vida real consegue ser. Está sendo, na verdade. Ele se desculpou e sei que foi sincero, mas não consigo parar de me imaginar como a noiva do Kill Bill na cena do massacre no restaurante japonês, só que os 88 são ele e a cena se repete incontáveis vezes. Até ele sentir muita dor, no mínimo. Pode não parecer, mas é uma ótima imagem mental.

A raiva geralmente esconde algum outro incômodo por trás e no meu parece ser tristeza. Pela confiança quebrada, por uma inocência que não tenho mais, pelo meu amigo que na verdade não tinha falecido, é uma pessoa horrível, dolorosamente humana e falha. Ainda não sei o que fazer com essa relação e se realmente a quero na minha vida porque é difícil pensar com clareza quando você sente dor. Só sei que não estou bem e que a cada frase tranquila e amigável que ele solta, imediatamente me vêm a mente oitenta e oito respostas agressivas que não aparecem nas minhas respostas calmas e agradáveis. Sei que precisamos conversar sobre isso, mas nem vontade existe. Vou manter todos esses sentimentos porque tenho o costume de descartar questões emocionais que me pareçam bobas e o meu incômodo com essa situação é uma delas. Eu tendia a passar por cima e seguir adiante sem olhar muito para o que me acontecia, mas não mais. Agora vou fazer as paradas que a vida me pedir e seguir adiante com os fardos que forem necessários.

De volta

nightmare-anny

Na quinta passada tive uma sessão de terapia extremamente difícil na qual encontrei com uma parte minha que eu nem sabia que precisava ser visitada. Era a eu de seis anos de idade, que precisava ser validada e ouvida, talvez até mesmo protegida. Naquele mesmo dia um dos meus melhores amigos, que sumiu há quatro anos sem muito motivo, veio falar comigo novamente. No dia seguinte estava em um curso e fizemos um exercício que mais uma vez me reconectou com partes minhas, daquela vez com a minha menina dos doze anos. Ontem encontrei sem querer um arquivo na internet que continha meu blog da adolescência, aquele do Blig que larguei ao vir pra cá.
 
Todos esses contatos com partes minhas têm me deixado muito emotiva, bem mais que o esperado. Durante muitos anos vi minhas figuras do passado como versões minhas que eu deixaria para trás na minha caminhada para ser alguém melhor. Depois vi essas mesmas figuras como partes necessárias para eu ser quem sou. Nas duas diferentes visões  havia uma ideia de superioridade da versão atual em relação às antigas, mais burras, mais feias, mais descartáveis. Só que após essas experiências, uma nova realidade apareceu para mim: todas aquelas meninas eram incríveis, completas e maravilhosas por si mesmas. Trabalhar com adolescentes, meu público favorito, costuma me dar a percepção de que as famílias os veem como adultos em formação e muitas vezes eles têm essa mesma pressa de abandonar seus eus atuais para mergulhar de cabeça no futuro, mas a verdade é que eu os amo como são. Amo suas confusões, certezas e buscas. Reler meu blog dos 16 anos me fez ter pela primeira vez esse olhar de profundo amor que tenho para os meus adolescentes para comigo mesma e viver isso está sendo muito  forte. Eu amo aquela menina por tudo que ela é, incondicionalmente. E não é um esforço fazer isso, esse amor vem e flui naturalmente como respirar. Um amor leve.

Pois bem, estou de volta. Ao meu blog e para mim mesma.