quarta-feira, 23 de maio de 2018

Os 88

 
Dia desses perguntei no Twitter como é que faz quando você ama a pessoa e quer decapitá-la ao mesmo tempo, brincando sobre a minha mentalidade para agressão ter uma estética baseada em Kill Bill. A história por trás do questionamento é tão simples quanto dolorosa.

Há alguns anos eu participava de uma comunidade muito movimentada no Orkut e nela fiz um grupo de amigos íntimos. São pessoas que vão à minha casa, que eu visito, vieram à minha formatura, dentre outras expansões do virtual para o real. Um deles era um dos mais especiais e era muito novo, devendo ter por volta de 14 anos quando eu já tinha 18 ou 20 - quanto mais velhas ficamos, menos exatas são as datas. Ainda estava na escola e eu já estava no primeiro ano de faculdade, mas nossa ligação ficou extremamente forte e hoje nem lembro como foi isso, mas estava lá. Durante muitos anos da minha vida eu quis ter um irmão e mesmo que à distância, sentia que tinha um pouco disso. Conversávamos dia e noite sobre os artistas e filmes obscuros do cinema indiano que ninguém conhecia, eu me preocupava com suas brigas com o irmão e sensação de não pertencimento na escola, contava das minhas experiências na faculdade, descobrimos o feminismo juntos. Me sentia muito amada e além de amá-lo de volta, me percebia cuidando de alguém. Pensando sobre isso agora, essa experiência talvez tenha sido uma das muitas que reafirmou minha conexão com uma profissão que envolve o cuidado humano. Aquele parecia ser o meu lugar. Também foi importante porque até então eu mantinha uma certa distância emocional dos meus amigos, e com ele e nossos outros amigos eu pude aproveitar a barreira virtual para experimentar dizer para as pessoas que eu as amava e elas eram importantes para mim.

Acompanhei o final do seu ensino fundamental, a passagem pelo ensino médio e entrada na faculdade com um orgulho fraternal. Logo após entrar na faculdade ele sumiu um pouco, coisa que já esperava por ter feito a mesma coisa quando vivi aquela fase, pois é um período de intensas adaptações e é coisa demais para dar conta. Nos encontramos pessoalmente e foi divertido, depois um tempo passou e ele sumiu completamente. Na época não senti muito por também estar enrolada com uma nova transição complexa de vida, que era a de estudante para recém-formada, mas às vezes eu e outra amiga falávamos sobre a estranheza daquilo. Com o passar do tempo me acostumei a pensar nele como uma pessoa que tinha um certo jeito e determinados interesses na adolescência e depois muda muito na vida adulta, pois é o que acontece com a maioria de nós. Então era como se aquele meu irmão menor tivesse morrido e eu não reconhecesse esse novo, que parecia bem esquisito e que nem estava presente, de qualquer forma. Até achava melhor que fosse assim, pois a  imagem que eu guardava do outro era tão boa que não valia a pena mexer nela.

Faz alguns dias que ele entrou em contato novamente e fiquei muito feliz por poder saber como as coisas andavam em sua vida. Fui receptiva e calorosa como sempre sou com pessoas especiais para mim que não vejo há muito tempo: é como se nunca tivéssemos nos afastado. Tudo estava indo bem e a fluidez da conversa era a mesma de anos atrás, até ele comentar que nos últimos anos vinha acompanhando meu outro blog e mostrar que ainda tem os mesmos interesses de antes. Naquele momento me surgiu uma raiva imensa e inesperada, pois não esteve presente durante os últimos anos e também por eu não estar muito acostumada a sentir raiva. Eu sabia lidar com o meu amigo que ficou adulto, mudou e descobriu outros interesses e pessoas. Eu sabia lidar com a morte simbólica do menino que era importante pra mim. Eu não lidar com uma pessoa que não tinha abandonado as coisas que compartilhávamos e que ainda mantinha alguma ligação comigo, mas que escolhia me deixar de lado. 

Tem sido difícil tentar reconstruir uma relação em cima dessa informação que eu não tinha antes e com essa raiva que ainda estou aprendendo a ver como parte de mim. Não sei nomear tudo porque são muitos sentimentos e pensamentos, mas é como se eu tivesse sido rejeitada após mostrar o que havia de bom em mim. Eu entenderia meus amigos das minhas fases mais chatas se afastando, mas aquilo foi demais. É complicado e injusto de uma forma como só a vida real consegue ser. Está sendo, na verdade. Ele se desculpou e sei que foi sincero, mas não consigo parar de me imaginar como a noiva do Kill Bill na cena do massacre no restaurante japonês, só que os 88 são ele e a cena se repete incontáveis vezes. Até ele sentir muita dor, no mínimo. Pode não parecer, mas é uma ótima imagem mental.

A raiva geralmente esconde algum outro incômodo por trás e no meu parece ser tristeza. Pela confiança quebrada, por uma inocência que não tenho mais, pelo meu amigo que na verdade não tinha falecido, é uma pessoa horrível, dolorosamente humana e falha. Ainda não sei o que fazer com essa relação e se realmente a quero na minha vida porque é difícil pensar com clareza quando você sente dor. Só sei que não estou bem e que a cada frase tranquila e amigável que ele solta, imediatamente me vêm a mente oitenta e oito respostas agressivas que não aparecem nas minhas respostas calmas e agradáveis. Sei que precisamos conversar sobre isso, mas nem vontade existe. Vou manter todos esses sentimentos porque tenho o costume de descartar questões emocionais que me pareçam bobas e o meu incômodo com essa situação é uma delas. Eu tendia a passar por cima e seguir adiante sem olhar muito para o que me acontecia, mas não mais. Agora vou fazer as paradas que a vida me pedir e seguir adiante com os fardos que forem necessários.

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